LiteraturaCrítica sobre o conto "Felicidade Clandestina" de Clarice LispectorEscrever sobre Clarice para mim, é exercício bom. Falar de seus contos, ficções reais e desabafos literários, é falar da própria autora.
Eu poderia falar de um marco nas obras da Clarice, intitulado "A hora da estrela". O livro que, na minha opinião, revolucionou a história literária que ela sempre teve, pois também trata a "desigualde social no Brasil" - diferente dos outros romances que se voltam para os "sentimentos"-. Em "A hora da estrela", Clarice relata a vida de Macabéa, uma nordestina que vai para a cidade do Rio de Janeiro. Mas o que isso tem a ver? Muita coisa: o preconceito com o nordestino que muito ainda se encontra no Brasil, a diferença de classes, os desafios daqueles que não possuem o pão de cada dia tão facilmente e outras questões que tudo isso implica. Eu mergulharia nesse assunto com vontade, falaria de seu impacto na sociedade, de seu crítico olhar social e tantos outros aspectos que valorizo, mas hoje eu vou falar de um simples conto que possui uma história normal, mas reflete atitudes permanentes de uma sociedade.
“Felicidade clandestina” é um conto que nasceu na década de 60 para ser publicado no Jornal do Brasil, onde Clarice mantinha uma coluna diária. Mais tarde, virou título de um livro que reunia outros contos e crônicas da autora. Os contos tratam de infância, adolescência e família, mas principalmente mostra angústias da alma. Sentimentos questionáveis de uma sociedade mais individualista e sistemática.
Embora se encontre uma narrativa admirável na obra, a saliência de sentimentos mais profundos dos personagens se torna mais relevante. Na verdade, é um conjunto que se completa. Uma mistura de brinquedo com palavras, junto com experiência em emoções. Ou habilidades significativas de saber retratar o interior do ser humano que é tão complexo.
Autora Clarice Lispector O conto narrado em primeira pessoa, fala da esperteza ou maldade de uma “gordinha ruiva de cabelos excessivamente crespos”, sem paixão por literatura, mas filha de um dono de livraria. Mas calma, isso não é o mais importante. A garota se recusa a emprestar 'As reinações de Narizinho', de Monteiro Lobato, para a própria narradora, encantada por livros. Porém, a intervenção da mãe da menina dona do "objeto", permite à autora deliciar-se, vagarosamente, com a posse do livro. O momento da interferência da mãe, causa um suave toque de leveza à leitura. É uma forma de suspirar aquilo que queria se encontrar na história. Entretanto, Clarice surpreende com sua realidade. O desfecho da história mostra o quanto o ser humano é insatisfeito com suas próprias realizações. ‘Não mais importa se estou com o livro que queria tanto ler, importa que eu sinta a todo o momento esse gostinho da conquista e, no momento em que estiver satisfeita, tornar-me-ei insatisfeita, para viver mais uma vez essa minha felicidade inventada.’ É isso que a autora me passa, a vontade de sempre querer mais... essa satisfação torna-se “clandestina”.
A história acontece no Recife e a dificuldade de relacionamentos, mais uma vez se faz presente na obra. Tudo é uma questão de “desejar aquilo que está por vir”. A autora se prende na expectativa da “felicidade” que é estar com o livro esperado, na excitação e no caminhar para o lugar secreto, à realização do desejo. Aquilo que outrora, parecia uma historinha sem sentido, torna-se em um aprendizado de contentamento recôndido. De um lado temos o egoísmo involuntário refletindo o mundo individualista cada vez mais gritante; do outro, a vontade que é satisfeita, mas não saciada posteriormente.
Eu diria que Clarice encontrou seu rumo ao publicar obras próprias. Ela sempre ousou, desde pequena, sempre foi diferente. E eu, admiradora do “além”, curiosa por coisas novas, inconformada com o normal, me identifiquei e, por que não dizer que me encontrei em algumas escritas? Eu já me vi entre as linhas, me questionei se mais alguém no mundo também já sentiu essa sensação. Quão ingênua eu fui ao pensar que isso só aconteceria comigo. Além da grande viagem de imaginar histórias normais, mas fascinantes em textos, é também comum se encontrar em palavras alheias, escritas há séculos e contextos diferentes. O mundo muda, mas os sentimentos não. O que nos difere, são nossos destinos e nossas atitudes perante nossas emoções. Nossos pensamentos e sensações muitas vezes são semelhantes. Eu sou igual a Clarice, em partes. “Eu sou uma pergunta”. E o conto também.
Originalmente, a história acaba com: “Não era mais uma menina com um livro: era uma menina com o seu amante”. De certo, meu suspiro foi maior aí. Mais perguntas, mais imaginações e mais identificações. Aonde fomos parar? Que narradora viajante, ela era tímida e vaidosa, “uma rainha delicada”, a espécie feminina com suas “relações ilícitas”, a princesa e o plebeu.